quarta-feira, 24 de junho de 2009

Esta noite...

Esta noite.
De longe, assisto à minha personagem desempenhar o papel que lhe foi atribuído. Sentado na cadeira da mesa de jantar, visualizo o corpo deitado no sofá, que assiste televisão de forma a esquecer a vida que deixou de ter. Vazio, liberto, solto. Em mais uma noite, deixa de pensar, de sentir, de ser, entrando num mundo fictício de histórias cruzadas, de mundos retirados da realidade, pincelados no grande ecrã. Ri, chora, emociona-se. Encontra nos enredos criados por terceiros as emoções que deixou de ter na sua própria vida, na sua própria verdade.
Esta noite, quero ajudá-lo. Quero gritar para que tome uma atitude, para que mude, para que tente. Quero abana-lo para lhe dar vida! Quero estremecer o chão que pisa criando uma onda de ocupação, originando uma nova história própria, longe das novelas que vê todas as noites. Quero escrever um guião e dar-lhe-o para que o represente como só ele consegue, perfeitamente. Só ele sabe actuar de forma a exceder as expectativas deste papel. Mas com tristeza, este corpo encara-me de frente questionando, como queres que o faça? Baixa o olhar e soluça num choro perdido, já tentei a exaustão.
Esta noite!
Com raiva parto a loiça que se encontra em cima da mesa! Sinto uma revolta agonizante por me sentir impotente, por não ser mágico, por estar paralisado. Apesar desta força que possuo, não consigo criar nada para o corpo que vejo ali, desprotegido, frágil, só. Sei que a máscara de pilar indestrutível que usa, que é facultada por mim, espírito forte, agora distanciado do seu próprio corpo. Mas não será hora de o verem na sua verdadeira essência? No seu mais profundo receio de se mostrar? De perceberem que afinal é mais fraco do que julgam e que chegou ao fim da linha da esperança? Será a cegueira ao largo de um ser humano assim tão espantosamente sumida, que ninguém tem o discernimento de reparar no entulho de outro alguém?
Esta noite levantar-me-ei e abraça-lo-ei. Esta noite não quero que se volte a sentir despido. Vou protegê-lo, agarra-lo com determinação e suavemente sussurrar-lhe ao ouvido, que não está sozinho! Vou acariciar a sua pele suave, por vezes ainda de criança, e oferecer-lhe o carinho de que sente falta. Vou tomá-lo nos meus braços e num bafejo eterno, adormecê-lo pacificamente num sono de embalar.
Esta noite...
Não terá medo, não terá nada para além dele próprio. Estará em paz consigo mesmo, sonhando sonhos que pensou perdidos, numa tranquilidade passada e julgada extinta! Será suficiente e não deixará que os pesadelos o atormentem novamente. Verá o nascer-do-sol com alegria e a última lágrima que cair irá transformar-se num sopro de fé que o assombrará num tempo indefinido. Aí, encontrará a luz de que precisa, a esperança que é necessária para não desistir. Esta noite, ele irá recarregar as energias e respirar fundo.

Esta noite...


Sem comentários: